ENA LAUTERT

As Pedras de Ena Lautert

Armindo Trevisan

I.

Atribui-se a um anônimo a frase: “A arte é uma mentira que nos faz descobrir a verdade”. A frase pode não ser exata, mas ilustra a natureza ilusória da arte. Uma ilusão que resulta numa criação visual e tangível de cores e volumes.

As pedras de Ena Lautert não são pedras de verdade. São pedras de papel-machê. O fato, pois, de serem pedras fictícias, artificiais, permite que nos aproximemos delas, sem temer-lhes o peso. Não nos fazem mal! Em compensação, fazem-nos bem porque nos ajudam a ver e a tocar a riqueza de suas formas, a variedade de seus volumes, a diversidade de suas texturas. Sua acumulação num determinado espaço, estranho a elas, o Museu, exila-as de seu habitat, e assim, à semelhança dos objets-trouvés de Duchamp, permitem situar-nos perante algo que não é nem pedra, nem papel. Permitem situar-nos perante um Símbolo. Algo que está aí, mas que também não está! As pseudo-pedras servem-nos de trampolim para o resgate de milhares de anos que a Humanidade tem vivido em sua companhia. De pedra, as habitações humanas iniciais. De pedra, os templos egípcios e gregos. De pedra, as catedrais medievais. Até mesmo o Apóstolo Pedro foi comparado a uma pedra! A pedras, também, foram comparados os cristãos. A pedras foram comparados, até mesmo, os corações das pessoas: “ Extrairei o vosso coração de pedra, e porei em seu lugar um coração de carne”(Ez 11,19).

II.

Ena convida-nos a duas atitudes: à certa agudeza de observação, e a um enigma. Observação: “Olhem” – parece dizer-nos ela - para esses objetos que os ventos e as águas esculpem...” E adverte-nos: “Os meus desenhos provam que bastam um pedaço de papel e um pouco de nanquim, para uma pessoa imitar (daí o rótulo “mimese”) a realidade, visível e invisível das pedras. Prestem bem atenção: minhas pedras não são meras pedras, são FORMAS!”

Para captar tais formas, é preciso ter um pouco da intuição que tinha Cézanne: ver uma paisagem naquilo que os camponeses da Provença não viam senão um mero meio de subsistência: uma paisagem!

Ena concentrou-se nas pedras por uma espécie de devoção ecológica. Quantas crianças de hoje conhecem, realmente, uma pedra? Sim, viram milhares de pedras... virtuais! Quantas pedras – não pedrinhas – viram, de verdade? É preciso, pois, redescobri-las, talvez numa rua de paralelepípedos, ou, mediante o álibi de uma Exposição como esta.

III.

As pedras de mentira levarão o espectador às pedras de verdade, que resistem mais do que as existências humanas, tanto que as cinzas de nossos corpos são colocadas debaixo de lápides. Lápide vem da mesma raiz que lápis: pedra! Escrevia-se, até há pouco, com esse derivado de um mineral.

Os desenhos de Ena exercem, ainda, uma função lúdica: as pedras, que aparecem em seus desenhos, não precisam obedecer às leis da gravidade. São pedras-livres, pedras à maneira dos portais das velhas Catedrais Góticas, obrigadas a celebrarem o gosto do equilíbrio, a graça de um anel, o sonho de uma flor. A ilusão continua, pois, em nosso mundo informatizado, possibilitando, a cada espectador, olhar para elas como a irmãs, que participam do mesmo mundo, do mesmo ar, e até da mesma efemeridade, embora a efemeridade das pedras seja mais durável que a nossa. Um dia, as pedras, serão quebradas, e dos sepulcros sairá uma borboleta que, como larva, foi primeiramente obrigada a morrer. A famosa imagem de Dante continua viva, diante de nossos olhos!

Brincai, amigos, com as pedras de Ena! Se isso não vos for possível, deixai-as no seu silencioso encanto de seres inanimados. De seres que se encantaram no papel-machê!

Armindo Trevisan

Professor e escritor, Doutor em Filosofia pela Universidade de Friburgo (Suíça).